terça-feira, 27 de setembro de 2011

CONTOS PARA AULA DE QUARTA-FEIRA DIA 28 / 09

Ocorvo
Numa sombria madrugada, enquanto eu meditava, fraco e cansado, sobre um estranho e curioso volume de folclore esquecido; enquanto cochilava, já quase dormindo, de repente ouvi um ruído. O som de alguém levemente batendo, batendo na porta do meu quarto. "Uma visita," disse a mim mesmo, "está batendo na porta do meu quarto - É só isto e nada mais." Ah, que eu bem disso me lembro, foi no triste mês de dezembro, e que cada distinta brasa ao morrer, lançava sua alma sobre o chão. Eu ansiava pela manhã. Buscava encontrar nos livros, em vão, o fim da minha dor - dor pela ausente Leonor - pela donzela radiante e rara que chamam os anjos de Leonor - cujo nome aqui não se ouvirá nunca mais.  'Numa sombria madrugada, enquanto eu meditava fraco e cansado sobre um estranho e curioso volume de folclore esquecido ...' .  E o sedoso, triste e incerto sussurro de cada cortina púrpura me emocionava - me enchia de um terror fantástico que eu nunca havia antes sentido. E buscando atenuar as batidas do meu coração, eu só repetia: "É apenas uma visita que pede entrada na porta do meu quarto - Uma visita tardia pede entrada na porta do meu quarto; - É só isto, só isto, e nada mais."   Mas depois minha alma ficou mais forte, e não mais hesitando falei: "Senhor", disse, "ou Senhora, vos imploro sincero vosso perdão. Mas o fato é que eu dormia, quando tão gentilmente chegastes batendo; e tão suavemente chegastes batendo, batendo na porta do meu quarto, que eu não estava certo de vos ter ouvido". Depois, abri a porta do quarto. Nada. Só havia noite e nada mais.    'Abri a porta do quarto. Nada. Só havia noite e nada mais.' .    Encarei as profundezas daquelas trevas, e permaneci pensando, temendo, duvidando, sonhando sonhos mortal algum ousara antes sonhar. Mas o silêncio era inquebrável, e a paz era imóvel e profunda; e a única palavra dita foi a palavra sussurrada, "Leonor!". Fui eu quem a disse, e um eco murmurou de volta a palavra "Leonor!". Somente isto e nada mais.    De volta, ao quarto me volvendo, toda minh'alma dentro de mim ardendo, outra vez ouvi uma batida um pouco mais forte que a anterior. "Certamente," disse eu, "certamente tem alguma coisa na minha janela! Vamos ver o que está nela, para resolver este mistério. Possa meu coração parar por um instante, para que este mistério eu possa explorar. Deve ser o vento e nada mais!"    Abri toda a janela. E então, com uma piscadela, lá entrou esvoaçante um nobre Corvo dos santos dias de tempos ancestrais. Não pediu nenhuma licença; por nenhum minuto parou ou ficou; mas com jeito de lorde ou dama, pousou sobre a porta do meu quarto. Sobre um busto de Palas empoleirou-se sobre a porta do meu quarto. Pousou, sentou, e nada mais.    'Abri toda a janela. E então, com uma piscadela, lá entrou esvoaçante um nobre Corvo dos santos dias de tempos ancestrais.' .     Depois essa ave negra, seduzindo meu triste semblante, acabou por me fazer sorrir, pelo sério e severo decoro da expressão por ela mostrada. "Embora seja raspada e aparada a tua crista," disse eu, "tu, covarde não és nada. Ó velho e macabro Corvo vagando pela orla das trevas! Dize-me qual é teu nobre nome na orla das trevas infernais!".     E o Corvo disse: "Nunca mais."    Muito eu admirei esta ave infausta por ouvir um discurso tão atenta, apesar de sua resposta de pouco sentido, que pouca relevância sustenta. Pois não podemos deixar de concordar, que ser humano algum vivente, fora alguma vez abençoado com a vista de uma ave sobre a porta do seu quarto; ave ou besta sobre um busto esculpido, sobre a porta do seu quarto, tendo um nome como "Nunca mais."     Mas o corvo, sentado sozinho no busto plácido, disse apenas aquela única palavra, como se naquela única palavra sua alma se derramasse. Depois, ele nada mais falou, nem uma pena ele moveu, até que eu pouco mais que murmurei: "Outros amigos têm me deixado. Amanhã ele irá me deixar, como minhas esperanças têm me deixado."     Então a ave disse "Nunca mais."     'Amanhã ele irá me deixar, como minhas esperanças têm me deixado...'    Impressionado pelo silêncio quebrado por resposta tão precisa, "Sem dúvida," disse eu, "o que ele diz são só palavras que guardou; que aprendeu de algum dono infeliz perseguido pela Desgraça sem perdão. Ela o seguiu com pressa e com tanta pressa até que sua canção ganhou um refrão; até ecoar os lamentos da sua Esperança que tinha como refrão a frase melancólica 'Nunca - nunca mais.' "    Mas o Corvo ainda seduzia minha alma triste e me fazia sorrir. Logo uma cadeira acolchoada empurrei diante de ave, busto e porta. Depois, deitado sobre o veludo que afundava, eu me entreguei a interligar fantasia a fantasia, pensando no que esta agourenta ave de outrora, no que esta hostil, infausta, horrenda, sinistra e agourenta ave de outrora quis dizer, ao gritar, "Nunca mais."    Concentrado me sentei para isto adivinhar, mas sem uma sílaba expressar à ave cujos olhos ígneos no centro do meu peito estavam a queimar. Isto e mais eu sentei a especular, com minha cabeça descansada a reclinar, no roxo forro de veludo da cadeira que a luz da lâmpada contemplava, mas cujo roxo forro de veludo que a lâmpada estava a contemplar ela não iria mais apertar, ah, nunca mais!    'Descansa! Descansa e apaga o pesar de tuas memórias de Leonor. Bebe, oh bebe este bom nepenthes e esquece a minha perdida Leonor!' .    Então, me pareceu o ar ficar mais denso, perfumado por invisível incensário, agitado por Serafim cujas pegadas ressoavam no chão macio. "Maldito," eu gritei, "teu Deus te guiou e por estes anjos te enviou. Descansa! Descansa e apaga o pesar de tuas memórias de Leonor. Bebe, oh bebe este bom nepenthes e esquece a minha perdida Leonor!"     E o Corvo disse: "Nunca mais."     "Profeta!" disse eu, "coisa do mal! - profeta ainda, se ave ou diabo! - Tenhas sido enviado pelo Tentador, tenhas vindo com a tempestade; desolado porém indomável, nesta terra deserta encantado, neste lar pelo Horror assombrado, dize-me sincero, eu imploro. Há ou não - há ou não bálsamo em Gileade? - dize-me - dize-me, eu imploro!"     E o Corvo disse: "Nunca mais."     "Profeta!" disse eu, "coisa do mal! - profeta ainda, se ave ou diabo! Pelo Céu que sobre nós se inclina, pelo Deus que ambos adoramos, dize a esta alma de mágoa carregada que, antes do distante Éden, ela abraçará aquela santa donzela que os anjos chamam de Leonor; que abraçará aquela rara e radiante donzela que os anjos chamam Leonor."     E o Corvo disse: "Nunca mais."     'Profeta!, coisa do mal! ..., dize-me sincero, eu imploro. Há ou não - há ou não bálsamo em Gileade?' .     "Que essa palavra nos aparte, ave ou inimiga!" eu gritei, levantando - "Volta para a tua tempestade e para a orla das trevas infernais! Não deixa pena alguma como lembrança dessa mentira que tua alma aqui falou! Deixa minha solidão inteira! - sai já desse busto sobre minha porta! Tira teu bico do meu coração, e tira tua sombra da minha porta!"     E o Corvo disse: "Nunca mais."     E o Corvo, sem sequer se bulir, se senta imóvel, se senta ainda, sobre o pálido busto de Palas que há sobre a porta do meu quarto. E seus olhos têm toda a dor dos olhos de um demônio que sonha; e a luz da lâmpada que o ilumina, projeta a sua sombra sobre o chão. E minh'alma, daquela sombra que jaz a flutuar no chão, levantar-se-á - nunca mais!     'E minh'alma, daquela sombra que jaz a flutuar no chão, levantar-se-á - nunca mais!' . FIM        Adaptação de Helder da Rocha

A ARANHA


— Quer assunto para um conto? — perguntou o Enéias, cercando-me no corredor.Sorri.— Não, obrigado.— Mas é assunto ótimo, verdadeiro, vivido, acontecido, interessantíssimo!— Não, não é preciso... Fica para outra vez...— Você está com pressa?— Muita!— Bem, de outra vez será. Dá um conto estupendo. E com esta vantagem: aconteceu... É só florear um pouco. — Está bem... Então... até logo... Tenho que apanhar o elevador...Quando me despedia, surge um terceiro. Prendendo-me à prosa. Desmoralizando-me a pressa.— Então, que há de novo?— Estávamos batendo papo... Eu estava cedendo, de graça, um assunto notável para um conto. Tão bom, que até comecei a esboçá-lo, há tempos. Mas conto não é gênero meu — continuou o Enéias, os olhos muito azuis transbordando de generosidade.— Sobre o quê? — perguntou o outro.Eu estava frio. Não havia remédio. Tinha que ouvir, mais uma vez, o assunto.— Um caso passado. Conheceu o Melo, que foi dono de uma grande torrefação aqui em São Paulo, e tinha uma ou várias fazendas pelo interior?Pergunta dirigida a mim. Era mais fácil concordar:— Conheci.— Pois olhe. Foi com o Melo. Quem contou foi ele. Esse é o maior interesse do fato. Coisa vivida. Batatal. Sem literatura. É só utilizar o material, e acrescentar uns floreios, para encher, ou para dar mais efeito. Eu ouvi a história, dele mesmo, certa noite, em casa do velho. Não sei se você sabe que o Melo é um violinista famoso. Um artista. Tenho conhecido poucos violões tão bem tocados quanto o dele. Só que ele não é profissional nem fez nunca muita questão de aparecer. Deve ter tocado em público poucas vezes. Uma ou duas, até, se não me engano, no Municipal. Mas o homem é um colosso. O filho está aí, confirmando o sangue... fazendo sucesso.— Bem... eu vou indo... Tenho encontro marcado. Fica a história para outra ocasião. Não leve a mal. Você sabe: eu sou escravo.Ora essa! Claro! Até logo.Palmadinha no ombro dele. Palmadinha no meu. Chamei o elevador.— É um caso único no gênero — continuou Enéias para o companheiro. — O Melo tinha uma fazenda, creio que na Alta Paulista. Passava lá enormes temporadas, sozinho, num casarão desolador. Era um verdadeiro deserto. E como era natural, distração dele era o violão velho de guerra. Hora livre, pinho no braço, dedada nas cordas. No fundo, um romântico, um sentimental. O pinho dele soluça mesmo. Geme de doer. Corta a alma. É contagiante, envolvente, de machucar. Ouvi-o tocar várias vezes. A Madrugada que Passou, O Luar do Sertão, e tudo quanto é modinha sentida que há por aí tira até lágrima da gente, quando o Melo toca...— Completo! — gritou o ascensorista, de dentro do elevador, que não parou, carregado com gente que vinha do décimo andar, acotovelando-se de fome.Apertei três ou quatro vezes a campainha, para assegurar o meu direito à viagem seguinte.Enéias continuava.— E não é só modinha... Os clássicos. Música no duro... Ele tira Chopin e até Beethoven. A Tarantela de Liszt é qualquer coisa, interpretada pelo Melo... Pois bem... (Isto foi contado por ele, hein! Não estou inventando. Eu passo a coisa como recebi.) Uma noite, sozinho na sala de jantar, Melo puxou o violão, meio triste, e começou a tocar. Tocou sei lá o quê. Qualquer coisa. Sei que era uma toada melancólica. Acho que havia luar, ele não disse. Mas quem fizer o conto pode pôr luar. Carregando, mesmo. Sempre dá mais efeito. Dá ambiente.O elevador abriu-se. Quis entrar.— Sobe!Recuei.— Você sabe: nessa história de literatura, o que dá vida é o enchimento, a paisagem. Um tostão de lua, duzentão de palmeira, quatrocentos de vento sibilando na copa das árvores, é barato e agrada sempre... De modo que quem fizer o conto deve botar um pouco de tudo isso. Eu dou só o esqueleto. Quem quiser que aproveite... O Melo estava tocando. Luz, isso ele contou, fraca. Produzida na própria fazenda. Você conhece iluminação de motor. Pisca-pisca. Luz alaranjada.— A luz alaranjada não é do motor, é do...— Bem, isso não vem ao caso... Luz vagabunda. Fraquinha...— Desce!Dois sujeitos, que esperavam também, precipitaram-se para o elevador.— Completo!— O Melo estava tocando... Inteiramente longe da vida. De repente, olhou para o chão. Poucos passos adiante, enorme, cabeluda, uma aranha caranguejeira. Ele sentiu um arrepio. Era um bicho horrível. Parou o violão para dar um golpe na bruta. Mal parou, porém, a aranha, com uma rapidez incrível, fugiu, penetrando numa frincha da parede, entre o rodapé e o soalho. O Melo ficou frio de horror. Nunca tinha visto aranha tão grande, tão monstruosa. Encostou o violão. Procurou um pau, para maior garantia, e ficou esperando. Nada. A bicha não saía. Armou-se de coragem. Aproximou-se da parede, meio de lado, começou a bater na entrada da fresta, para ver se atraía a bichona. Era preciso matá-la. Mas a danada era sabida. Não saiu. Esperou ainda uns quinze minutos. Como não vinha mesmo, voltou para a rede, pôs-se a tocar outra vez a mesma toada triste. Não demorou, a pernona cabeluda da aranha apontou na frincha...O elevador abriu-se com violência, despejando três ou quatro passageiros, fechou-se outra vez, subiu.O Enéias continuava.— Apareceu a pernona, a bruta foi chegando. Veio vindo. O Melo parou o violão, para novo golpe. Mas a aranha, depois de uma ligeira hesitação, antes que o homem se aproximasse, afundou outra vez no buraco. "Ora essa!" Ele ficou intrigado. Esperou mais um pouco, recomeçou a tocar. E quatro ou cinco minutos depois, a cena se repetiu. Timidamente, devargazinho, a aranha apontou, foi saindo da fresta. Avançava lentamente, como fascinada. Apesar de enorme e cabeluda, tinha um ar pacífico, familiar. O Melo teve uma idéia. "Será por causa da música?" Parou, espreitou. A aranha avançaria uns dois palmos...— Desce! — Eu vou na outra viagem.— Dito e feito... — continuou Enéias. — A bicha ficou titubeante, como tonta. Depois, moveu-se lentamente, indo se esconder outra vez. Quando ele recomeçou a tocar, já foi com intuito de experiência. Para ver se ela voltava. E voltou. No duro. Três ou quatro vezes a cena se repetiu. A aranha vinha, a aranha voltava. Três ou mais vezes. Até que ele resolveu ir dormir, não sei com que estranha coragem, porque um sujeito saber que tem dentro de casa um bicho desses, venenoso e agressivo, sem procurar liquidá-lo, é preciso ter sangue! No dia seguinte, passou o dia inteiro excitadíssimo. Isto sim, dava um capítulo formidável. Naquela angústia, naquela preocupação. "Será que a aranha volta? Não seria tudo pura coincidência?" Ele estava ocupadíssimo com a colheita. Só à noite voltaria para o casarão da fazenda. Teve que almoçar com os colonos, no cafezal. Andou a cavalo o dia inteiro. E sempre pensando na aranha. O sujeito que fizer o conto pode tecer uma porção de coisas em torno dessa expectativa. À noite, quando se viu livre, voltou para casa. Jantou às pressas. Foi correndo buscar o violão. Estava nervoso. "Será que a bicha vem?" Nem por sombras pensou no perigo que havia ter em casa um animal daqueles. Queria saber se "ela" voltava. Começou a tocar como quem se apresenta em público pela primeira vez. Coração batendo. Tocou. O olho na fresta. Qual não foi a alegria dele quando, quinze ou vinte minutos depois, como um viajante que avista terra, depois de uma longa viagem, percebeu que era ela... o pernão cabeludo, o vulto escuro no canto mal iluminado.— (Desce!— Sobe!— Desce!— Sobe!)— A aranha surgiu de todo. O mesmo jeito estonteado, hesitante, o mesmo ar arrastado. Parou a meia distância. Estava escutando. Evidentemente, estava. Aí, ele quis completar a experiência. Deixou de tocar. E como na véspera, quando o silêncio se prolongou, a caranguejeira começou a se mover pouco a pouco, como quem se desencanta, para se esconder novamente. É escusado dizer que a cena se repetiu nesse mesmo ritmo uma porção de vezes. E para encurtar a história, a aranha ficou famosa. O Melo passou o caso adiante. Começou a vir gente da vizinhança, para ver a aranha amiga da música. Todas as noites era aquela romaria. Amigos, empregados, o administrador, gente da cidade, todos queriam conhecer a cabeluda fã de O Luar do Sertão, e de outras modinhas. E até de música boa. Chopin... Eu não sei qual é... Mas havia um noturno de Chopin que era infalível. Mesmo depois de acabado, ele ainda ficava como que amolentada, ouvindo ainda. E tinha uma predileção especial pela Gavota, ela surgia. O curioso é que o Melo tocava todas as noites. Havia ocasiões em que custava a aparecer. Mas era só tocar a Gavota, ela surgia. O curioso é que o Melo se tomou de amores pela aranha. Ficou sendo a distração, a companheira e Ela, com E grande. Chegou até a pôr-lhe nome, não me lembro qual. E ele conta que, desde então, não sentiu mais a solidão incrível da fazenda. Os dois se compreendiam, se irmanavam. Ele sentia quais as músicas que mais tocavam a sensibilidade "dela"... E insistia, nessas, para agradar a inesperada companheira de noitadas. Chegou mesmo a dizer que, após dois ou três meses daquela comunhão — o caso já não despertava interesse, os amigos já haviam desertado — ele começava a pensar, com pena, que tinha de voltar para São Paulo. Como ficaria a coitada? Que seria dela, sem o seu violão? Como abandonar uma companheira tão fiel? Sim, porque trazê-la para São Paulo, isso não seria fácil!... Pois bem, uma noite, apareceu um camarada de fora, que não sabia da história. Creio que um viajante, um representante qualquer de uma casa comissária de Santos. Hospedou-se com ele. Cheio de prosa, de novidades. Os dois ficaram conversando longamente, inesperada palestra de cidade naqueles fundos de sertão. Negócios, safras, cotações, mexericos. Às tantas, esquecido até da velha amiga, o Melo tomou do violão, velho hábito que era um prolongamento de sua vida. Começou a tocar, distraído. Não se lembrou de avisar o amigo. A aranha quotidiana apareceu. O amigo escutava. De repente, seus olhos a viram. Arrepiou-se de espanto. E, num salto violento, sem perceber o grito desesperado com que o procurava deter o hospedeiro, caiu sobre a aranha, esmagando-a com o sapatão cheio de lama. O Melo soltou um grito de dor. O rapaz olhou-o. Sem compreender, comentou: — Que perigo, hein? O outro não respondeu logo. Estava pálido, numa angústia mortal nos olhos.— E justamente quando eu tocava a Gavota de Tárrega, a que ela preferia, coitadinha...— Mas o que há? Eu não compreendo...E vocês não imaginam o desapontamento, a humilhação com que ele ouviu toda essa história que eu contei agora...— Desce!Desci.
por Orígenes Lessa
(Omelete em Bombaim, 1946.)
segunda ou terça-feira
Preguiçosa e indiferente,sacudindo o espaço com facilidade com suas asas,conhecendo o rumo,a garça passa sobre a igreja por baixo do céu.Branca e distante,absorvida em si mesma,ela percorre e volta a percorrer o céu,avança e permanece.Um lago?Apaguem suas margens!Uma montanha?Ah,perfeito-o sol doura-lhe as encostas.Lá ele cai.Samambaias,ou penas brancas para sempre e sempre-     Desejando a verdade,esperando-a,laboriosamente       destilando algumas palavras,para sempre desejando-(um grito repercute para a esquerda,outro para a direita.Rodas rangem discordantes.Ônibus se conglomeram conflituosos)-para sempre desejando-(o relógio assegura com 12 badaladas distintas que é eio-dia;a luz irradia escalas douradas;crianças enxameiam)-para sempre desejando a verdade.Vermelho é o domo;moedas balançam de árvores;a fumaça se desenrosca das chaminés;ladram,berram,gritam"Vende-se ferro!"-e a verdade?    
Irradiando-se até o ponto em que os pés dos homens e os pés das mulheres,negros ou revestidos de ouro-(Este tempo nublado-Açúcar?Não,obrigado-a comunidade do futuro)-a chama do isqueiro dardejando e avermelhando o quarto,exceto as figuras negras e seus olhos brilhantes,enquanto lá fora um furgão descarrega,Miss Fulana bebe chá à sua mesa e o vidro laminado preserva casacos de pele-            Tremulante com a leveza de uma folha,à deriva nos cantos,soprada do outro lado das rodas,salpicada de prata,em casa ou fora de casa,reunida,separada,dissipada em escalas distintas,arrebatada para cima,para baixo,desgastada,arruinada,convocada-e a verdade?               Ser relembrada agora rente à lareira,no quadro branco de mármore.Das profundezas do marfim                ascendem palavras que vertem o seu negrume,floridas e perspicazes.Tombado está o livro;na chama,no fumo,nas momentâneas faíscas-ou agora viajando,o quadrado de mármore pendente,minaretes embaixo e os mares indianos,enquanto o espaço investe azulado e as estrelas cintilam-verdade?Ou agora,contente com a solidão?
Preguiçosa e indiferente a garça retorna;o céu vela as estrelas;e depois as desnuda.

(Virginia Woolf-Segunda ou terça-feira-do livro Objetos Sólidos-editora Siciliano,   tradução de Hélio Pólvora)





Nenhum comentário:

Postar um comentário